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Cães deixam ‘corredor da morte’ e ganham vida nova como seguranças

Canil em Ribeirão Preto reabilita animais ‘condenados’ por histórico violento.
Recuperados, eles ganham trabalho como vigilantes de quatro patas.

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Quando cães de grande porte se tornam excessivamente agressivos passam a ser um problema nas vidas de muitos donos. Para alguns deles, a saída encontrada pode ser radical, chegando ao ponto de procurar um centro de controle de zoonoses ou uma clínica especializada para sacrificar o animal. Entretanto, em um canil em Ribeirão Preto (SP), um trabalho baseado na paciência e na disciplina tem conseguido livrar cachorros com características violentas da morte. Reabilitados, eles ganham uma nova chance e conquistam até mesmo uma oportunidade no mercado de trabalho.
O responsável por salvar os bichos do ‘corredor da morte’ é o adestrador Sérgio Cantadeiro, de 39 anos. Dono do canil, ele afirma que ao menos 11 cachorros de raças como pitbull, pastor belga malinois, pastor alemão, fila brasileiro e rottweiler, que estavam prestes a dar adeus à vida, já foram reabilitados e, atualmente, trabalham como seguranças noturnos em construções, empresas e imóveis residenciais desocupados. “Eles não são assassinos”, diz.

A relação de Cantadeiro com animais começou há 20 anos, quando ele se mudou de Bauru (SP) para Barretos (SP). Ele diz que procurou a polícia na cidade para treinar um rottweiler que havia comprado. “Eles [policiais] perguntaram se eu queria ser cobaia. Perguntei o que era isso, e eles disseram ‘tomar mordidas dos cães’. Eu falei que queria só que, em contrapartida, eles deveriam me ensinar a adestrar'”.
Dali em diante, Cantadeiro começou a treinar os cachorros dos amigos, até transformar a paixão pelos cães em profissão, que exigiu cursos no Brasil e no exterior.
O adestrador conta que, na maioria das vezes, os cachorros com histórico de agressividade chegam ao canil por indicação de profissionais da área veterinária ou são levados diretamente pelos donos. Segundo ele, a procura acontece principalmente quando as pessoas que convivem com os cães não conseguem mais realizar tarefas simples, como dar banho, alimentá-los ou trocar a água.

É o caso do rotweiller Bruce, hoje com 5 anos. O especialista conta que foi procurado por uma funcionária do Centro de Controle de Zoonoses de Araraquara (SP). Ele lembra que ela queria saber se ele tinha interesse em adotar o macho, que chegou ao departamento para ser sacrificado porque os donos não conseguiam mais cuidar dele.
Por causa da extrema agressividade, Bruce foi transportado sedado de Araraquara para Ribeirão Preto. Após os primeiros treinamentos deu sinais de que a agressividade era adquirida. “Fazia quatro meses que ninguém tocava nesse cão. No dia seguinte, eu tirei uma foto abraçado com ele”, afirma. Um mês e meio após a chegada ao canil, Bruce já estava apto ao trabalho e à nova vida.
O pastor alemão Bob, de 5 anos, também ganhou uma nova chance nas mãos de Cantadeiro. O cão passaria por eutanásia após ter atacado e ferido com gravidade duas pessoas em novembro de 2012. Sem saber do ocorrido, o adestrador entrou em contato com o dono do animal. “A filha dele falou ‘se você der jeito mesmo, conseguir pegar, pode levar esse cão’. Eu fui e em cinco minutos coloquei o cão na carreta. Ele tentou me morder, lógico. Mas eu dei uns trancos na guia e consegui por ele no carro.”
Na casa nova e com as sessões de treinamento, Bob foi reabilitado e ganhou a função de segurança. “Hoje, se você ver esse cachorro comigo, ele parece um doce. Meus funcionários entram, dão comida, tudo tranquilo.”

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Não há milagre
O especialista destaca que não há milagre, mas sim a correção das alterações comportamentais apresentadas pelos cães, que consiste basicamente em hierarquizar a relação que os animais têm com os seres humanos, de modo que o homem consiga exercer a função de liderança. No caso dos cães de aluguel, apenas a equipe do canil desempenha o papel do líder para que o trabalho como segurança não seja comprometido.
“Ele [cachorro agressivo] percebeu que quando morde, consegue o que quer. Aqui ele vai entender que se morder, não consegue. Consequentemente, o animal começa a abaixar e, resumindo, se torna normal de novo, porque o temperamento dele é um temperamento calmo e tranquilo, e a agressividade foi adquirida com o tempo”, explica o adestrador.
No entanto, Cantadeiro alerta que cada caso demanda um modo específico. “Cada cão é um indivíduo, então eu tenho que analisar, perceber, assimilar e aí lidar com o animal daquela forma que eu achar melhor. Tem cão extremamente agressivo que em dois dias está uma mãe”, brinca.

O trabalho para capacitar os cachorros para cuidar dos imóveis dura, em média, seis meses, e as sessões de treinamento são diárias – levam de 10 a 30 minutos. Cantadeiro frisa que não utiliza nenhum tipo de tortura ou violência na recuperação. Mesmo nos casos mais extremos, o único meio de que ele dispõe para se proteger de possíveis investidas é uma guia com enforcador, objeto que tem a função de educar o bicho.
O adestrador também afirma que não é necessário instigar os animais para ensinar-lhes o ofício de segurança. “Eu não treino ataque. Eu faço ele guardar e defender, canalizo o instinto natural dele, que é defesa de território, alimentação e procriação. Por isso que quando um cão chega dentro de uma obra, você precisa ver a felicidade dele. Ele vai fazer o trabalho que faria na natureza e nós damos essa função a ele”, explica.
Segundo Cantareiro, o contrato de serviço de um segurança de quatro patas pode variar de R$ 1,3 mil a R$ 7 mil por mês.
Fera curada
Um dos casos mais emblemáticos entre os seguranças caninos é o do rottweiler Fera. O animal não estava necessariamente no corredor da morte, mas nem por isso deixou de ser salvo de um fim trágico.
De acordo com Cantadeiro, há mais de dois anos, Fera foi recolhido na Avenida Brasil, zona norte de Ribeirão Preto. O treinador conta que passava pela via, tradicional por abrigar diversas lojas de autopeças usadas, quando se deparou com o cachorro magrelo e desambientado, a ponto de os carros terem de desviar para não atropelá-lo.

Atraído por aquela cena, a primeira atitude do adestrador foi chamar o animal com um pouco de ração e, em seguida, procurar por seu dono. “Eu atravessei a via para ver de quem era aquele cachorro e o pessoal de um desmanche falou que eles [os proprietários] tinham comprado outro comércio e o abandonado do jeito que estava”, diz.
O treinador lembra que, ao se informar melhor sobre a situação, tomou conhecimento de que outros cães que estavam no mesmo estabelecimento já tinham morrido, e Fera teve a sorte de conseguir escapar por uma abertura na grade. “Ele pesava aproximadamente 23 quilos e estava literalmente pele, osso e cabeça. Mais uma semana ele morreria de fome e de sede.”
Cantadeiro lembra que abrigou Fera no canil, o castrou e começou um trabalho para ganho de massa com ração balanceada e acompanhamento veterinário. Totalmente recuperado, o cachorro passou por sessões de treinamento e pouco tempo depois também ganhou a função de segurança. “Hoje ele está com aproximadamente 54 quilos e é um cão extremamente forte, inteligente e muito carinhoso comigo. É um cão que dentro de uma obra ninguém entra”, elogia.
O especialista se deu tão bem na recuperação de cães dados como casos perdidos que já recebeu até convites para reeducar crianças. Entretanto, o adestrador diz que não pensou duas vezes antes de recusar. “Eu já tive quatro propostas. Falei que eu já educava as minhas filhas”, brinca.

FONTE: G1